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No escuro

Inconsistências e lacunas nos instrumentos de licenciamento da Usina Castanheira podem comprometer qualidade da decisão dos servidores da SEMA-MT sobre a obra.

Pesquisadoras vinculadas à Universidade Internacional da Flórida (FIU), Simone Athayde e Renata Utsunomiya, apresentaram um estudo sobre a Usina Hidrelétrica (UHE) Castanheira à equipe da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT), na última semana, visando subsidiar a pasta para avaliação do processo de licenciamento da obra. O trabalho, inédito, envolveu uma equipe de cientistas e se debruçou sobre a análise de impactos cumulativos e sinérgicos da UHE, prevista para ser construída no rio Arinos, norte do estado. Os resultados do laudo indicam que os instrumentos de avaliação do licenciamento ambiental não dão conta de informações suficientes para embasar as tomadas de decisão sobre a hidrelétrica.

Simone Athayde e Renata Utsunomiya em apresentação da pesquisa a servidores da SEMA-MT. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN

Foram analisados no trabalho a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da bacia do rio Juruena, feita em 2006, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), de 2014, e o Estudo de Componente indígena (ECI), produzido após a conclusão do EIA, apenas em 2017. A partir disso, constatou-se a falta de diálogo entre os diferentes instrumentos e problemas decorrentes da defasagem de informações, o que leva a cenários imprecisos de impactos, como o aumento de nutrientes e queda nos níveis de oxigênio da água, fator relacionado à mortandade de peixes, chamado de eutrofização. Para se ter ideia, em 2006, o AAI apontava aumento nos níveis de fósforo além dos limites permitidos pela legislação para 20 anos depois. Porém, em 2014, no EIA, eles já tinham sido extrapolados. Outro fator que aparece no AAI e não no EIA, como explicou a pesquisadora Renata Utsunomiya, foi o impacto dos agrotóxicos, o que precisaria não só ser incluído, mas atualizado dada a expansão da agropecuária na região nos últimos anos.

Bacia e sub bacias do Juruena, com aproveitamentos hidrelétricos e UHE Castanheira. Fonte: Empresa de Pesquisa Energética (EPE)

Um aspecto preocupante identificado no trabalho é que foram desconsiderados os impactos cumulativos com as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) construídas e previstas para a região. “Como planejar a bacia deixando isso de lado?”, questiona a pesquisadora Simone Athayde.

Além disso, outras atividades como agropecuária, indústria madeireira, mineração, sobrepesca, infraestrutura e expansão urbana, e mudanças climáticas, não foram contabilizadas. Somados, os fatores podem potencializar a diminuição de pluviosidade, o desmatamento, acúmulo de poluentes e aumento de temperatura na água, aumento de sedimentos, além de alterações da vazão à jusante do rio e de toda a dinâmica que permite a vida das espécies aquáticas e das populações da região. 

A pesquisa demonstra também que o local escolhido para a construção da UHE é um dos piores possíveis, do ponto de vista dos impactos sobre os recursos pesqueiros da bacia do Juruena. Localizado próximo à foz do Arinos, bloqueando 600 km de rio acima, a usina, se efetivada, irá comprometer a conectividade hídrica da bacia, alterando de forma irreversível a dinâmica e a reprodução da ictiofauna, cortando em 54% a conectividade para peixes migradores, como pacus, matrinxãs, piaus, curimbas e grandes bagres (jaús, pintados, cacharas e outros), podendo causar a extinção local e nacional de importantes espécies. Simone Athayde explicou, a partir da modelagem feita por um dos pesquisadores da FIU, Thiago Couto, que se todas os empreendimentos hidrelétricos planejados para a bacia do Juruena se tornarem realidade, a conectividade hidrológica chegaria a quase zero em toda a bacia.

Projeção da UHE Castanheira. Disponível no Relatório de Impacto Ambiental/EPE.

Sem consulta

A quantidade de impactos possíveis e subdimensionados nos instrumentos de avaliação de impactos da UHE Castanheira perderam em qualidade, também, pela falta de consulta às comunidades, o que é pré-requisito legal nos processos de licenciamento ambiental, conforme a convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil. De acordo com Simone Athayde, seria necessário falar com as comunidades nos momentos iniciais do projeto para entender, de fato, os campos que deveriam ser estudados a partir da indicação de quem vive no local a ser afetado. Dessa forma, seriam aprofundados nos instrumentos de avaliação, por exemplo, estudos sobre os tracajás e moluscos de essencial importância cultural para povos indígenas da região e que mereceriam trabalhos específicos. 

“Não foi nada disso que eles levaram em conta na nossa região”, disse Jaime Rikbaktsa, ao falar sobre a concha, exclusivamente coletada no Baixo Arinos e utilizada como matéria prima principal na confecção do colar de casamento tradicional do povo Rikbaktsa, o Tutãra. A elaboração do colar é um saber milenar do povo Rikbaktsa que é ensinado de mãe para filha, tornando-se um traço identitário desse povo indígena.  Ele denunciou a falta de consulta ao seu povo e que foram ignorados no processo o Plano de Gestão Territorial e Ambiental dos Rikbaktsa, assim como seu protocolo de consulta. “Por que não fazem estudo completo e direito? Não vamos aceitar isso porque estão querendo empurrar goela abaixo”. 

Jaime Rikbaktsa durante reunião com a SEMA-MT. Foto: Dafne Spolti/OPAN

Genir Piveta de Souza, da comunidade Pedreira, em Juara, disse que também não foram consultados e que se a usina for construída não terão para onde ir. Em sua comunidade, são desenvolvidas atividades econômicas importantes como a produção de leite, mel e de alimentos que representam a subsistência das comunidades, geração de renda e emprego para o município de Juara. “Esse empreendimento não é bom para Juara. Não temos outro sonho de começar tudo de novo como começamos ali”, disse ela. Quando chegou na região, Genir produzia 10 litros de leite e hoje já são 300, depois de 30 anos de muito esforço.

Genir Piveta de Souza falando sobre a comunidade Pedreira. Foto: Dafne Spolti/OPAN

Durante a reunião na SEMA, representantes de Pedreira e de Palmital, dos povos Rikbaktsa, e também Apiaká, Kayabi, Munduruku e Tapayuna, saíram de suas regiões e se fizeram presentes para reivindicar seus direitos e denunciar as violações com a possível construção da UHE Castanheira. Além deles, a atividade contou com representantes da Defensoria Pública da União, do Ministério Público Estadual de Juara, da Promotoria de Justiça da Bacia Hidrográfica do Baixo Juruena, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), da OPAN, do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad) e da Rede Juruena Vivo.