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Ainda estamos aqui

Pela primeira vez, comunidades tradicionais do Brasil participam da reunião do grupo implementador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da Convenção do Clima. Discussão sobre inclusão ganha escala e revela desafios que dependem do engajamento efetivo das Partes.

Áudio gerado por IA

Por Andreia Fanzeres / OPAN

Participantes da reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da LCIPP

A Conferência do Clima de Bonn, que tem a missão de preparar decisões para a COP30, em Belém, começou fazendo história para povos e comunidades tradicionais do Brasil. Mesmo sem serem reconhecidos formalmente pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (UNFCCC), sete organizações representativas das comunidades participaram de uma das agendas inaugurais do encontro, a 13ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador (FWG) da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) da UNFCCC, entre os dias 10 e 13 de junho. Foi a primeira vez desde 2019 que este espaço viu uma participação qualificada das comunidades locais do Brasil. Elas fizeram contribuições reafirmando a necessidade de melhores condições de envolvimento na agenda climática.

Samuel Caetano em defesa da participação das comunidades tradicionais na reunião do FWG da LCIPP

A presença massiva brasileira neste espaço, aberto às organizações indígenas, de comunidades, observadores da sociedade civil e governos, teve o objetivo de mostrar para os demais participantes que as comunidades locais estão presentes, engajadas e interessadas nas construções que buscam influenciar as negociações climáticas. “Somos coletivos que manejam os territórios de forma sustentável, que cuidam das águas, dos solos, dos ecossistemas. Somos parte ativa da diversidade social, cultural e ecológica do nosso país. Temos histórias, culturas, ancestralidades, formas de governança e modos de vida próprios, reconhecidos por nossos pares e sustentados em quatro critérios essenciais: identidade coletiva, vínculo territorial, formas próprias de organização social e práticas de uso sustentável da natureza”, discursou Samuel Caetano, geraizeiro e presidente do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

Em 2018, durante a Conferência do Clima de Katowice, na Polônia (COP24), os países aprovaram a criação do mecanismo de operacionalização da LCIPP, que foi definida no Acordo de Paris como um espaço que deve fortalecer o conhecimento, as tecnologias, as práticas e esforços de comunidades locais e povos indígenas para lidar e responder às mudanças climáticas de uma maneira holística e integrada. Esse mecanismo é o Grupo de Trabalho Facilitador (FWG), que instituiu uma estrutura inédita de funcionamento, tendo 7 membros indígenas e 7 representantes dos países. Em Bonn, houve mais uma etapa do rodízio de representantes, como ocorre todos os anos. Mas, desta vez, foi possível ouvir membros dirigirem-se às comunidades locais e apoiarem sua participação para além da formalidade do espaço.

Carol Franco, vice-presidente do Órgão Subsidiário de Assessoramento Técnico e Científico (SBSTA), ao qual a Plataforma está vinculada, ressaltou que os povos indígenas e as comunidades locais são líderes e praticantes da ação climática e incentivou seu trabalho conjunto no FWG para operacionalizar a plataforma. Grace Balawag, em nome do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas (IIPFCC), saudou o engajamento histórico dos povos indígenas ao longo de todos esses anos até a decisão que instituiu a plataforma na COP21, em Paris. “O Caucus tem advogado duramente pelo reconhecimento e respeito às contribuições dos povos indígenas em todas as trilhas de negociação”, pontuou.

Inovações do novo plano de trabalho

O novo plano de trabalho da Plataforma para o período 2025-2027, aprovado na COP29, no Azerbaijão, vem trazendo inovações que tentam superar as dificuldades de incidência não apenas dos povos indígenas e das comunidades locais, mas também da própria plataforma como instância da UNFCCC, ainda desconhecida por muitos e, por isso, pouco considerada nos processos de negociação.

Por este motivo, Ian Fry, ex-relator especial para promoção e proteção de direitos humanos no contexto das mudanças climáticas e representante do governo de Tuvalu na Convenção, sugeriu que a frequência das decisões sobre a plataforma nas negociações mudasse. “Nas negociações, só sabemos sobre a Plataforma a cada três anos. As contribuições feitas até aqui não alcançaram as negociações. Nós estamos perdendo essa riqueza de conhecimento. Sugiro que vocês solicitem aos países a inclusão de um item de agenda para que anualmente seja possível que os negociadores conheçam o trabalho que está sendo feito pela Plataforma”, recomendou.

Além da adoção de terminologias e expressões do universo indígena, como as abordagens coletivas (collective approaches), que substituíram as atividades pontuais dos planos de trabalho anteriores, a ideia é que os resultados das atividades sob cada uma das abordagens sejam sistematizados e integrados junto às trilhas de negociação. Além disso, a partir de agora, o FWG definirá um tema de enfoque a todas as abordagens coletivas. Para este ano, o assunto escolhido pelos membros reúne gestão holística, transição justa, ambição e justiça climática.

Com relação à metodologia da 13ª reunião do FWG, atendendo a um pedido vocalizado no primeiro dia de reunião por Gustavo Sánchez, presidente da Rede Mexicana de Organizações Florestais e Campesinas (Red Mocaf), e demais representantes das comunidades locais do Brasil, foi instituído também pela primeira vez um grupo de discussão para que as comunidades locais pudessem contribuir com sugestões para aprimorar e direcionar a implementação das atividades previstas para a Plataforma.

Para além das intervenções espontâneas, quando a participação dos observadores era permitida, as comunidades locais fizeram aportes sobre as atividades previstas no Plano de Trabalho de Baku dentro das abordagens coletivas, momento moderado pelos membros do FWG, Cozier Frederick, representando os países do Grupo de Estados Insulares (SIDS) e por Rafik Aini, pelo Grupo Regional da África. Sugeriram, por exemplo, que temas como direito aos territórios das comunidades locais para o enfrentamento às mudanças climáticas, importância da gestão da água de solo, a sinergia entre as três convenções do Rio (1992), experiências em manejo florestal comunitário e adaptação de sistemas alimentares tradicionais poderiam orientar o 5º encontro de Detentores de Conhecimento, previsto para acontecer durante a COP30. E que este encontro deveria reunir povos indígenas e comunidades locais, considerando momentos de trabalho específicos. Para cada uma das seis abordagens do plano de trabalho, houve sugestões das comunidades, como jamais a Plataforma havia visto.

Comitiva apoiadora de povos e comunidades tradicionais na LCIPP

No grupo formado por povos indígenas falantes de português e espanhol, o tema da água e da segurança alimentar também foi um destaque, assim como a violência e a criminalização de lideranças indígenas e a necessidade de inclusão de discussões sobre povos em isolamento voluntário no contexto das mudanças climáticas. A justiça climática como consequência da justiça territorial foi bastante ressaltada, em linha com as prioridades do grupo de comunidades locais. Como aporte ao formato deste tipo de diálogo na próxima COP, o grupo resgatou as vantagens da metodologia dos Diálogos de Talanoa, uma palavra das ilhas Fiji que inspirou um formato inclusivo, participativo e transparente de diálogo adotado na COP23 baseado na contação de histórias, quando representantes de alto nível dos países puderam ouvir a sociedade civil.

O chefe do núcleo de Florestas para a COP30, o diplomata brasileiro Marco Tulio Cabral, participou dos trabalhos da plataforma e anunciou, no primeiro dia, que a Presidência da COP30 realizará o workshop aprovado por decisão da COP29, em Baku, separando-o em três momentos. O primeiro durante a Semana do Clima da África, prevista para setembro; o segundo durante a pré-COP, em Brasília, no mês de outubro, e o terceiro durante a COP30, em Belém. Falou também do Círculo dos Povos, formado pela Comissão Indígena Internacional e pela Comissão Internacional de Comunidades Tradicionais, Afrodescendentes e Agricultores Familiares, uma iniciativa que tem a intenção de ampliar espaços de representação da sociedade civil.

Clima de tensão

A presença numerosa de organizações da sociedade civil brasileira, comunidades tradicionais e governo gerou estranhamento, pois lembra que uma decisão das Partes de 2018 até hoje não foi implementada: a garantia de lugar a três membros representantes de comunidades locais. Este fato ensejou comentários indicando que a busca por participação das comunidades naquele espaço poderia significar uma ameaça aos direitos indígenas. Consideraram também que o processo de envolvimento das comunidades e seu pleito por reconhecimento seria uma luta digna do Brasil, mas sem representatividade global. Isso porque, em determinados contextos, o entendimento sobre comunidades locais abre margem para a inclusão de grupos sociais com atuação predatória aos territórios dos povos indígenas.

Numa fala comovente, Angélica Mendes ressaltou a história de seu avô Chico Mendes, e muitos outros extrativistas que, em parceria com os povos indígenas, criaram a Aliança dos Povos da Floresta. “Ver as comunidades locais sendo recebidas aqui e tendo espaço de fala é um momento muito importante para amplificar essa aliança criada nos anos 80. Como meus colegas falaram, nós sempre estivemos aqui”, destacou. Marinalda Rodrigues, do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), pediu equidade. “Não se pode continuar falando em inclusão se as comunidades locais seguem excluídas do processo de negociação climática”, disse.

Deroní Mendes na reunião do FWG

“Somos diferentes, mas não somos inimigos ou adversários. Não estamos aqui para competir ou violar direitos. O que nos conecta é a luta por reparação, por direitos e por justiça climática, pois historicamente nossos corpos e territórios foram violados por colonizadores e por aqueles que detém recursos financeiros”, disse Deroní Mendes, quilombola e coordenadora do Programa de Transparência e Justiça Climática do Instituto Centro de Vida (ICV).

Durante as discussões, o negociador da União Europeia, Geert Fremout, informou que desde o início do processo de construção da plataforma pensou-se no seu princípio incremental. “Acho que é hora de darmos mais passos, com bastante discussão como estamos tendo aqui, mas ao mesmo tempo não está sob o mandato do FWG mudar sua composição, o que deve acontecer a partir do envolvimento dos países”, orientou. Segundo ele, os esforços da plataforma deveriam ser fortalecer sinergias e mensagens em comum entre povos indígenas e comunidades locais, se quiserem mesmo influenciar os rumos das negociações.

A líder espiritual e anciã Mary Lyons fez a última intervenção muito emocionada. “Pensem que em um quarto de século não podíamos nem falar neste espaço. Eles nos deram uma caixinha pequena onde veem a gente brigar. Precisamos parar. Somos adultos. Quando a gente começa a brigar um com outro, adivinha quem está ganhando?”

Pedidos

As organizações que representam as comunidades locais presentes à reunião do FWG protocolaram aos membros do órgão, ao SBSTA e às Partes da Convenção uma carta solicitando seu reconhecimento formal perante a UNFCCC. Entre outros pontos, elas requerem a criação de um fundo para participação de comunidades locais, melhoria do diálogo intercultural e mecanismos de tradução para uma melhor inclusão e incidência nos processos.

Participaram da 13ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas a Rede Cerrado, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, o Comitê Chico Mendes, o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, a Rede de Povos e Comunidades Tradicionais, a Associação PomerBR, do povo Pomerano, apoiados por organizações como a Operação Amazônia Nativa, o Instituto Centro de Vida, o Instituto Sociedade População e Natureza, o Instituto Internacional de Educação do Brasil, o Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso e o Instituto Clima e Sociedade. A Rede de Cooperação Amazônica, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia também marcaram presença, assim como jovens indígenas participantes do programa Kuntari Katu.

A próxima reunião do FWG vai acontecer em Belém de 4 a 7 de novembro de 2025.