Mulheres Chiquitano: exemplo de luta e prosperidade
Em encontro realizado no Portal do Encantado, as mulheres Chiquitano dão show de economia solidária e contam sobre o fortalecimento do povo e a luta pela terra
Áudio gerado por IA
Por Dafne Spolti/OPAN

Mulheres Chiquitano de três diferentes localidades se reuniram no Memorial do Povo Chiquitano, na Terra Indígena (TI) Portal do Encantado (MT), para falar sobre o seu papel enquanto guardiãs da cultura, sobre qualidade de vida e a defesa da terra. A atividade, realizada em 31 de maio e 01 de junho, levantou questões que perpassam a vida das mulheres e de todo povo Chiquitano, evidenciando a história de resistência que vêm construindo com prosperidade e riqueza.
A abertura contou com a presença dos caciques, o que deu força para o evento. Participaram moradores das aldeias Nautukirs Pisiorsch, Acorizal, Fazendinha, Paama Mastakama, Nova Fortuna e a comunidade urbana Grupo Beija-Flor, que fica em Porto Esperidião. A atividade foi realizada em parceria entre o povo Chiquitano e a Operação Amazônia Nativa (OPAN), por meio de um projeto de apoio à gestão territorial financiado por Manos Unidas (https://www.manosunidas.org/).
No início da atividade, as mulheres compartilharam assuntos de relevância, como a transmissão cultural para as diferentes gerações, prevenção a doenças com o uso de plantas medicinais, os impactos de tecnologias à saúde das crianças e adolescentes e os desafios e oportunidades para as economias dos Chiquitano e para as mulheres. “Quando você tem sua renda, você consegue olhar mais pra frente”, afirmou Francelina Chue Poquiviqui, do grupo Beija Flor.
Ao longo do encontro, as mulheres Chiquitano apresentaram uma grande diversidade de produtos como pano-de-prato, bolsas, sabões, tapetes, frutas, ovos, galinha caipira, batata-doce, banana e outros itens que iam tomando lugar na mesa central da atividade. Na aldeia Nova Fortuna, há pouco mais de dois anos, começaram o trabalho de corte e costura. E agora os tapetes produzidos também compõem essa vasta produção Chiquitano.





Nesse conjunto de produções, são valorizados elementos culturais do povo, com grafismos próprios, representação da flauta e do tambor da festa Curussé e do pote tradicional de barro. “Começamos a demarcar o nosso artesanato”, afirmou Maria Siria Rupê, da aldeia Fazendinha, contando que numa marcha das mulheres indígenas, em Brasília, viram bolsas de outros povos e resolveram, então, fazer com traços de sua própria arte tradicional Chiquitano.
Os artesanatos e alimentos naturais são comercializados dentro da própria comunidade com custos acessíveis. “A gente vende aqui a um valor que as pessoas consigam pagar”, afirmou Cristiane Mendes, da aldeia Acorizal. No caso do Grupo Beija-Flor, a venda tem um público em Porto Esperidião e até na Bolívia. Há interesse das mulheres do povo Chiquitano das diferentes regiões em ampliar as vendas cada vez mais.
Essa diversidade produtiva também foi observada nas atividades ao ar livre durante o encontro, que incluiu passeios pela roça da escola da TI Portal do Encantado. Arroz, abóbora, batata, cana-de-açúcar, gergelim e outros foram cultivados como aprendizado associado às disciplinas. As convidadas passearam também pelo quintal de Sebastiana Mendes da Rocha e do seu esposo, Vitor Ronaldo Gomes da Rocha, cacique da aldeia Nautukirs Pisiorsch, revelando ainda mais alimentos: vários tipos de pimentas, laranja, acerola, limão, toranja, milho, pepino, tomate, citronela, cebolinha, hortelã, cana, mamão e muitos outros.
Na casa de Sebastiana e Vitor, foi colocada em prática a troca de experiências sobre plantas medicinais, um dos temas motivadores do encontro de mulheres. Francelina preparou um remédio caseiro que foi desenvolvido pelo seu marido para problemas de estômago. “Ele chegou nessa receita simples e muito eficaz”, disse ela, mostrando ao grupo, que pôde experimentar o chá quentinho. A consultora Márcia Antunes Maciel, facilitadora do encontro de mulheres, falou sobre a conservação de plantas medicinais e que, além do uso próprio, elas podem ser mais uma oportunidade para geração de renda.

Além da valorização das plantas, o indigenista Paulo Eberhardt, da OPAN, defendeu a importância dos alimentos no cuidado e prevenção à saúde. “Talvez você não vá ter dor de cabeça, você não vá ter dor de estômago, você não vai estar desnutrido, você não vai ter um monte de coisa se você tiver comida”, afirmou ele.
A programação do encontro também incluiu uma apresentação sobre a finalidade de políticas públicas, focando em algumas que podem ser bem aproveitadas pelos Chiquitano, como as de aquisição de alimentos e fomento para agricultura. Nessa atividade, as mulheres colocaram em pauta inconsistências no acesso a direitos, como pensões e aposentadorias, o que tem gerado enorme transtorno.
Dada a relevância do tema de políticas públicas, ele foi escolhido entre as prioridades do próximo encontro, que deverá ser realizado em agosto, quando as mulheres pretendem se reunir também para transmitir conhecimentos sobre a construção do fogão tradicional Chiquitano.
Luta, resiliência e força
A história recente do povo Chiquitano, a partir de 1940, é definida pela ocupação de suas terras por destacamentos militares do Exército e pela cessão de muitas áreas a fazendeiros, conforme descrito em um diagnóstico socioambiental colaborativo, elaborado pela OPAN em 2024. Essa situação submeteu o povo à condição de “permissionários”, em que precisavam de autorização para viver no próprio território.
Mas hoje a vida já está melhorando. O povo Chiquitano tem uma terra declarada, aguardando a demarcação, e segue em luta para a garantia do direito territorial em outras localidades, ainda que sejam espaços pequenos comparados a outros territórios indígenas.
“A gente está aqui hoje porque a gente brigou por este lugar”, disse Maria Catarina Mendes, da aldeia Nautukirs Pisiorsch. Ela acompanhou o tempo em que seu avô trabalhava para o Exército sob a ameaça de serem tirados dali, e que sua avó passava o dia todo na água lavando lençóis para o destacamento e almoçava marmita levada pelas netas na beira do rio. “É uma luta. E hoje a gente está aqui colhendo fruto. E eu dou graças a Deus”, disse ela, contando que antes as mulheres que casavam não tinham autorização de fazer sua casa no território, situação que mudou com a delimitação da terra.
Outras mulheres também fizeram relatos emocionantes sobre períodos difíceis enfrentados. “Lá na aldeia nossa, no começo era difícil. Fomos ameaçados. Só que graças a Deus teve pessoas que confortaram, ajudaram, e assim nós queremos também: que tenha mais pessoas para seguirmos em frente”, contou Eronita Aiala Cassupá, da aldeia Nova Fortuna. “Vamos pensar agora nos próximos sonhos. Não vamos parar. O trabalho é bonito, importante e gera renda”, avalia Luciana Rebellato, coordenadora do projeto desenvolvido pela OPAN junto aos Chiquitano.]
“Esse momento de troca e de compartilhar a história da resistência, da caminhada que elas fizeram por estar em toda uma área de fronteira, por toda essa insegurança fundiária, mostra muita força delas, a resistência, a resiliência para estarem aí conduzindo a vida, a história, e olhando pro futuro”, destaca a coordenadora do Programa Mato Grosso, da OPAN, Artema Lima.
Novos passos
As mulheres Chiquitano enfatizaram a importância de estarem juntas com mais frequência. “Não é toda vez que a gente senta para se reunir. Só por celular. Espero que a gente se reúna mais pra gente ter mais força”, incentivou Elenir de Arruda Espinosa, vice cacique da aldeia Acorizal. “A união, quando a gente senta pra falar sobre cultura, sobre saúde, isso é muito forte”, disse Maria Siria Rupê.

O encontro de mulheres Chiquitano foi pensado como uma experiência que se revelou muito mais ampla ao longo dos dias. “Esse momento teve significância sociopolítica e de fortalecimento para o movimento das mulheres chiquitanas e indiretamente para o povo Chiquitano que luta arduamente pela regularização do território”, afirma Márcia Maciel.
Sebastiana, da aldeia Nautukirs Pisiorsch, também lembrou a história de luta que já percorreram. “Falar ‘foi fácil’, não foi. Se estamos aqui é porque Deus está do nosso lado”. Ela incentivou a luta das mulheres e homens Chiquitano, reconhecendo os trabalhos da aldeia Nova Fortuna e do Grupo Beija-Flor, que vieram de longe, seus artesanatos e sua participação no evento, e incentivando os esforços para melhoria da qualidade de vida do povo. “Se queremos vitória, temos que lutar”, concluiu.