Sementes de esperança em Marãiwatsédé
Atividade tradicional de coleta fortalece mulheres Xavante na gestão de seu território.
Por: Giovanny Vera/OPAN
Terra Indígena Marãiwatsédé, Bom Jesus do Araguaia, MT – Os Xavante da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, no Mato Grosso, vivem em uma área que desde a década de 1960 foi invadida por projetos agropecuários, tendo sua vegetação devastada por posseiros, quando recebeu o título de terra indígena mais desmatada em 2011. Em 2013, os Xavante receberam a posse definitiva de seu território e novos acordos foram estabelecidos para sua gestão. Dentro deste contexto, as mulheres de Marãiwatsédé se destacam no trabalho com as sementes, lutando e resistindo dia a dia mediante o uso tradicional de seus recursos e a ocupação de seu território.
A TI Marãiwatsédé, com 165.241 hectares, retomada pelo povo Xavante em 2004, foi considerada em 2011 a terra indígena mais devastada da Amazônia Legal: teve 71,5% de sua superfície desmatada, de acordo com o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal (Prodes). Com o intuito de reverter essa situação, desde 2009 diversas iniciativas de reflorestamento, fortalecimento das roças tradicionais e quintais em apoio à soberania alimentar e cultural do povo vêm sendo realizadas pelos indígenas junto com a OPAN. Atualmente a terra indígena ainda apresenta um cenário de áreas degradadas, com antigos pastos e sem a mata original.
É nesta paisagem que hoje em dia as mulheres Xavante realizam a coleta de sementes florestais, entre elas jatobá, urucum, jenipapo, inajá, tucum, pequi, caju, baru, xixá, feijão-guandu, carvoeiro e outras, que tradicionalmente são usadas para alimentação e rituais da comunidade. A novidade é que uma parte delas é vendida para a Associação Rede de Sementes do Xingu (ARSX), instituição parceira criada pelo Instituto Socioambiental (ISA) composta por grupos de indígenas e camponeses que coletam sementes da floresta e do Cerrado e as comercializa, com intuito de recuperar áreas degradadas.
Com esta iniciativa, as coletoras de Marãiwatsédé mantêm e promovem sua cultura, garantem a alimentação das famílias e apoiam a gestão e o uso de seu território tradicional, enquanto geram uma pequena renda para a comunidade indígena.
Esperança nas sementes
A Associação Rede de Sementes do Xingu (ARSX) é formada por grupos de indígenas e camponeses que coletam sementes da floresta e do Cerrado e as comercializa, com intuito de recuperar áreas degradadas e gerar renda para os coletores. |
Tudo começou em 2011, paradoxalmente o ano do maior desmatamento na terra indígena, quando coletores da ARSX visitaram Marãiwatsédé e apresentaram seu trabalho aos Xavante. Nessa ocasião foram mostrados os benefícios que a coleta oferece para a recuperação e reflorestamento de áreas degradadas e também o ganho social para os grupos coletores, como melhorias na alimentação das famílias e a geração de renda. Esta ação esteve acompanhada por um processo de sensibilização e debates entre os Xavante, indigenistas e técnicos para discutir as possibilidades de Marãiwatsédé de participar da iniciativa.
Depois desse trabalho as mulheres Xavante formaram o grupo Pi’õ Romnhá Ma’ubu’mrõiwa – que significa ‘Mulheres Coletoras de Sementes’ – com as primeiras 16 mulheres interessadas em participar. Logo iniciaram uma parceria com a ARSX, e, já organizadas, participaram de oficinas de formação em variados temas, como técnicas de manejo de espécies, etnomatemática, pesagem e outros, recebendo acompanhamento técnico. Como resultado desse primeiro ano, elas conseguiram entregar 30 quilos de sementes coletadas em Marãiwatsédé.
“No começo eram poucas mulheres, a maioria anciãs”, disse Carolina Rewaptu, cacique da aldeia Madzabzé e elo do grupo de coletoras. “Mas com o tempo outras foram se animando porque viram que tinham resultados e que é importante para [a TI] Marãiwatsédé”, acrescentou.
Em 2012 e 2013 mais mulheres foram se incorporando ao grupo de coletoras, animadas pelos resultados mostrados pelas outras participantes. Com as capacitações e melhor organização, as coletas foram sendo aprimoradas e a produção mais eficiente.
O papel das coletoras de Marãiwatsédé se destaca tanto pelo histórico da luta pela terra como pelo papel da mulher nesta atividade, sendo uma peça fundamental para a conquista da soberania alimentar na comunidade. A coleta também se materializou em uma ferramenta de autonomia das mulheres Xavante, uma opção para a geração de renda e para a valorização de seu território, conforme explicou Carolina.
Para Claudia Alves de Araújo, uma das diretoras da ARSX, além das coletoras apoiarem diretamente na gestão de seu território, ocupando-o, elas promovem o cuidado e a recuperação das áreas desmatadas. “É dessa vegetação que elas extraem as sementes que hoje alimentam seus filhos, que vai alimentar também amanhã, e elas sabem muito bem disso”, afirmou. Claudia destacou que a coleta é realizada de forma sustentável, para que a extração de sementes não seja prejudicial e para que produza ainda mais, considerando a precária situação da vegetação em Marãiwatsédé.
A coleta
Antigamente os Xavante realizavam expedições de caça e coleta em seu território que podiam durar entre duas semanas e três ou quatro meses, chamadas Dzomöri, e hoje em dia duram menos dias, explica a indigenista Sayonara da Silva em sua dissertação Alimentos, Restrições e Reciprocidade no Ritual Xavante do Wapté mnhõno (Terra Indígena Marãiwatsédé, Mato Grosso).
Atualmente as coletoras fazem a chamada Abahi, que é a coleta realizada na terra indígena e em seu entorno durante apenas um dia, e acontece normalmente em épocas secas (junho, julho, agosto, setembro), quando a maioria das sementes está amadurecendo.
A muvuca é uma técnica de semeadura direta com variedades de sementes que germinam simultaneamente e adubação verde, que é usada na recuperação de áreas degradadas. |
Desde que participam da ARSX, o grupo de mulheres Pi’õ Romnhá Ma’ubu’mrõiwa elabora no final do ano uma lista potencial de produção de sementes disponíveis no território, na qual estimam quanto pretendem coletar para o ano seguinte. Os dados são enviados para a ARSX, que os compatibiliza com os pedidos dos compradores interessados nas sementes para suas muvucas. Posteriormente, a ARSX faz seu pedido de sementes para o semestre, definindo a quantidade de quilos por espécie que quer comprar.
No mês de março de 2017, as coletoras de Marãiwatsédé apresentaram à ARSX seu potencial de coleta, e em maio a associação solicitou o pedido de sementes de 27 espécies.
Quando o pedido da ARSX chega, o grupo de mulheres realiza reuniões onde são mostradas fotos das espécies solicitadas, tanto da casca, da semente e da árvore, o nome da espécie na língua Xavante, e cada mulher escolhe as que quer coletar, a partir das sementes que há nas proximidades de suas aldeias. Uma dificuldade encontrada é sobre o entendimento relacionado a pesos e medidas, para o qual foi proposto o uso de garrafas PET com diferentes tamanhos e pesos distintos.
Em agosto, setembro, outubro e novembro de 2017 foram realizadas reuniões para acompanhamento da coleta, pesagem e entrega de sementes pelas coletoras nas aldeias de Marãiwatsédé, de acordo com o pedido da Associação Rede de Sementes do Xingu. Em total as mulheres Xavante entregaram 769 kg de sementes, e o restante foi armazenado na Casa de Sementes como reserva para o próximo pedido. Parte deste estoque já foi incorporado na venda de sementes deste ano.
Exemplos na região
As coletoras da TI Marãiwatsédé participam ativamente de eventos onde compartilham conhecimentos e experiências conseguidos na ARSX. Nesses encontros também acontecem trocas de sementes que permitem que os grupos possam conseguir novas espécies ou sementes melhoradas, além de estabelecer e reafirmar relacionamentos que fortalecem suas instituições.
Contato com a imprensa
Giovanny Vera
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