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Intercâmbio climático: experiência indígena de Roraima inspira Rede Juruena Vivo

Sineia do Vale, referência nas discussões globais sobre clima, apresenta o percurso do Conselho Indígena de Roraima e as políticas nacionais e internacionais de enfrentamento

Por Dafne Spolti e Túlio Paniago/OPAN e Larissa Silva/Rede Juruena Vivo

As mandiocas cozinharam dentro do solo na região da Serra da Lua, em Roraima, há mais de dez anos. Tal situação, grave e com impactos diretos para a alimentação dos povos indígenas, movimentou as comunidades a pensarem de que maneiras lidar com as transformações do clima. Assim, com o Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização indígena com mais de 50 anos, passaram a avaliar as mudanças observadas e construíram um planejamento para enfrentá-las.

Essa experiência ganhou atenção da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) na Convenção do Clima (COP) do ano passado e é exemplo para populações que estejam sofrendo ou que passem a sentir os efeitos do aquecimento global. Nos dias 29 e 30 de setembro, em Cuiabá (MT), membros da Rede Juruena Vivo, indígenas e não indígenas, tiveram uma aula com Sineia do Vale, do povo Wapichana. As discussões levantadas suscitaram questões semelhantes em seus respectivos territórios, que podem ser trabalhadas a partir de métodos e considerando as particularidades locais.

Sineia do Vale apresentando experiências do CIR. Foto: Dafne Spolti/OPAN

No primeiro dia de atividade, Sineia explicou o que é o aquecimento global fazendo uma analogia a um lençol fininho em volta do planeta, que vem ficando cada vez mais grosso por conta das atividades humanas e a emissão de gases que se acumulam na atmosfera. A partir daí, montou, pela percepção dos presentes, uma árvore de saberes sobre a definição de mudança do clima, demonstrando que todos conhecem bem esse tema, ainda que algumas nomenclaturas lhes sejam estranhas. A mudança no horário de ir à roça, o aquecimento das águas, o sumiço dos peixes são algumas das observações das aldeias. “É na sabedoria, na vivência e na experiência que esses povos são doutores em mudança climática”, disse. 

Vídeo sobre o aquecimento global apresentado no encontro com Sineia do Vale.

O volume e a diversidade de conhecimentos, assim como a enorme capacidade dos povos indígenas conservarem o meio ambiente, são da maior importância para que, neste planeta em emergência climática, sejam pensadas soluções. “Temos repetido: ‘parem de aquecer, parem de emitir gases’. Caso contrário, não vai prejudicar somente a nós, mas a todos”, observa Sineia. Por conta disso,  ela destaca a essencialidade de políticas públicas para os povos indígenas e da garantia de incidência política dessas populações em relação ao tema. “Falam que a solução são os povos indígenas, mas não garantem os nossos direitos”, destaca, indicando ainda a responsabilidade dos países que são os maiores emissores de gases do efeito estufa.

Impactos culturais e modelos de desenvolvimento

Na atividade, foi possível aprofundar a dimensão dos impactos dessas transformações no tempo/clima. Desde a situação das Ilhas Fiji, localizadas do outro lado do mundo, que estão fadadas ao desaparecimento em 2050, até enchentes na região norte do Brasil, secas e a mudança em toda essa dinâmica de plantios, caça, pesca, com interferências profundas para a saúde e a vida cultural.

“O impacto qualquer um sente”, disse Tereza Cristina Kezonazokero, do povo Haliti-Paresi, contando que antes ficavam desde cedo até três horas da tarde lavando roupa, fazendo as atividades do dia a dia, e que hoje, depois das nove da manhã, já não dá mais para aguentar o calor. Ela se preocupa com os modelos produtivos crescentes, como o do agronegócio, que contribuem com o aquecimento global e resultam também em escassez de alimentos ritualísticos importantes. “Comprar de fora para fazer ritual não é a mesma coisa”, afirma, enfatizando ainda a importância da união do povo para enfrentar as adversidades em curso. 

Tereza Cristina Kezonazokero com árvore de saberes ao fundo. Foto: Larissa Silva/Rede Juruena Vivo

Marta Tipuici, do povo Manoki, observou as transformações dentro dos territórios indígenas em decorrência da devastação no entorno e apresentou uma preocupação sobre as gerações futuras, inclusive diante da necessidade de geração de renda e a instabilidade em relação a modelos produtivos possíveis (mais ou menos sustentáveis). Ela comentou sobre algumas mudanças na vegetação, como um período de dois anos em que não frutificaram os pequis, de enorme importância para os Manoki, e que as transformações também são resultado de uma soma de impactos: o clima, a instalação de empreendimentos hidrelétricos e outros. 

Marta Tipuici, à direita. Foto: Larissa Silva/Rede Juruena Vivo

Diante desse contexto, a troca de experiências pode ser um importante instrumento para reverter essa situação. “É importante a gente criar os nossos próprios projetos de enfrentamento às mudanças climáticas a partir do modelo deles [povos de Roraima], porque a gente ainda não tem”, apontou Lilian Rikbaktsa. A importância da cultura indígena nesse processo foi destacada por Tereza Cristina Kezonazokero: “Nunca é tarde para o recomeço, para reconstruir o que foi perdido. A nossa ancestralidade e espiritualidade precisa estar ligada com a nossa vivência aqui na Terra. É nosso sagrado junto com o sagrado da natureza. Nós estamos mudando o tempo, mas o tempo também está mudando as pessoas”. 

Lilian Rikbaktsa – Foto: Larissa Silva/RJV

No segundo dia de atividade, Sineia do Vale detalhou as ações realizadas em Roraima para o enfrentamento às mudanças climáticas: os planos de enfrentamento elaborados para três regiões, os planos de gestão territorial com partes específicas sobre o clima, além de outras atividades de gestão territorial e ambiental, como vigilância e proteção, prevenção e controle do fogo e outras. Ela detalhou a iniciativa das mulheres para a seleção de sementes mais resistentes ao calor por conta de algumas não estarem germinando. Com as “sementes vivas” essas mulheres conseguem garantir o plantio dos roçados e a alimentação da comunidade.

Ela também propôs uma segunda dinâmica interativa para refletir sobre as mudanças climáticas. Os participantes receberam papéis em formato de octógono, nos quais escreveram como sentem as transformações do clima no cotidiano e o que têm feito para tentar mitigar ou ao menos lidar com essas questões. Os papéis foram distribuídos lado a lado na parede e o conjunto fazia alusão ao formato de uma colmeia. “Todas as abelhas se juntam para fazer o mel. Se quisermos evitar o caos climático, também temos que trabalhar todos juntos, cada um fazendo a sua parte”, explicou Sineia. 

Sineia do Vale com árvore da sabedoria e colmeia. Foto: Larissa Silva/Rede Juruena Vivo

A reflexão proposta na atividade ecoou na realidade vivida pelos povos do noroeste de Mato Grosso, cujo entorno das terras é cercado por imensas lavouras e uma onda de empreendimentos hidrelétricos. Marta Tipuici reforçou a importância da luta coletiva e da elaboração de uma estratégia de enfrentamento, mas ponderou que não se trata de uma responsabilidade exclusivamente indígena. “As mudanças climáticas não atingem só aqueles que destroem sem consciência o meio ambiente. A resposta da natureza é para todos. Não vamos conseguir reverter a situação se depender só de nós, porque não somos nós que estamos destruindo a natureza. Mas precisamos entender esse processo e montar o nosso projeto de enfrentamento contra as mudanças climáticas”. 

Sineia também destacou o papel do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC), criado em 2015, que enfrentou muitas dificuldades durante o governo Bolsonaro, mas que agora está novamente se reestruturando. O CIMC surgiu com o propósito de garantir a formação contínua e qualificada e o engajamento dos povos indígenas nas questões climáticas, levando a  uma maior incidência indígena sobre um tema do qual são as principais autoridades no assunto. Os membros são representantes das cinco regiões do país e das diferentes organizações regionais de base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Vídeo sobre mudanças do clima e o CIMC.

Além de possibilitar formações e troca de experiências, o CIMC possibilitou que indígenas ocupassem espaços estratégicos, como no Ministério do Meio Ambiente e na própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), promovendo um diálogo mais estreito entre o movimento indígena e o governo, bem como a participação em grandes conferências internacionais a respeito do tema. 

Por fim, Sineia detalhou os conceitos de REDD e REDD+, iniciativas reconhecidas no âmbito da Convenção do Clima da ONU que objetivam remunerar ações de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal com componentes de salvaguarda socioambientais, para evitar que tais projetos não violem direitos ou tenham consequências negativas ao ambiente e às comunidades. 

Participantes da Rede Juruena Vivo no encontro com Sineia do Vale. Foto: Dafne Spolti/OPAN

Originalmente, o REDD era destinado à recuperação de áreas desmatadas, focado em ações de reflorestamento e reparação. “Em geral, quem recebia o recurso era quem já tinha desmatado seu território, em sua maioria latifundiários. E qual era o benefício para aqueles que mantêm a floresta de pé, para quem nunca a desmatou?”, questionou Sineia durante a explanação.

O REDD+ Jurisdicional foi criado em resposta a esse questionamento. Trata-se do REDD+ aplicado a uma jurisdição (no caso do Brasil aos estados que compõem a Federação). Ele foca em atividades de conservação e manejo sustentável de áreas florestais. Esse recurso é enviado aos países em desenvolvimento comprometidos com a questão climática, e posteriormente são repassados aos respectivos estados. Desta quantia, uma porcentagem deve ser necessariamente destinada aos povos indígenas, afinal territórios indígenas e reservas legais são os principais responsáveis pela preservação dos biomas e a manutenção das florestas em pé. Por conta disso, como destacou Sineia, é importante que o mecanismo seja monitorado pelas comunidades e que o recurso de fato seja utilizado em benefício de seus projetos de vida. “Além de manter a floresta, tem que manter as pessoas que são da floresta”, pontua Sineia.