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Povos indígenas e agricultores familiares marchando contra UHE Castanheira – Larissa Silva/RJV

Povos indígenas e agricultores familiares se manifestam contra usina de castanheira e outras ameaças durante Festival Juruena Vivo

Décima edição do Festival refletiu sobre o avanço de frentes predatórias de exploração, mudanças climáticas, alterações na lei da pesca, protocolos de consulta, cadeias de valor, comunicação popular e demarcação de territórios.

Sob o tema “Conectando territórios e somando lutas para o bem viver”, a décima edição do Festival Juruena Vivo mobilizou cerca de 400 pessoas na região da bacia do rio Juruena. Entre os dias 04 e 08 de novembro, pautas relacionadas aos direitos territoriais e à proteção ambiental foram debatidas na aldeia Nova Munduruku, Terra Indígena (TI) Apiaká-Kayabi. Uma carta-manifesto com os principais encaminhamentos e reivindicações foi elaborada e assinada pela Rede Juruena Vivo, coletivo composto por povos indígenas, agricultores familiares, moradores de municípios da região e organizações da sociedade civil.

Como parte da programação, foi realizada uma marcha pela cidade de Juara (MT) contra o projeto de instalação da Usina Hidrelétrica (UHE) Castanheira. A carta-manifesto foi lida e entregue em mãos à presidenta da Câmara Municipal de Vereadores, Sandy de Paula. O documento também será encaminhado à Prefeitura local, aos Ministérios Públicos Federal e Estadual (MPF e MPE), à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e à Defensoria Pública da União (DPU).

Por meio de documentos oficiais, pesquisas e levantamentos sistemáticos, a OPAN e a Rede Juruena Vivo mantêm um constante trabalho de monitoramento de ameaças e pressões, possibilitando maior autonomia e empoderamento das populações. “Antes, só ficávamos sabendo [do empreendimento] quando a audiência pública já estava marcada ou quando o empreendedor estava batendo à porta. Agora, levantamos essas informações e buscamos compartilhar amplamente. A força da mobilização social e da comunicação popular fazem a diferença. As comunidades passam a criar suas próprias narrativas”, complementa Liliane Xavier.

Empreendimentos hidrelétricos 

A bacia hidrográfica do rio Juruena, localizada no noroeste de Mato Grosso, é a mais extensa do estado, drenando mais de 19 milhões de hectares em uma área que abrange 29 municípios. A bacia concentra 23 territórios de mais de uma dezena de povos indígenas. Na região, as pressões partem de várias frentes, como do agronegócio e do garimpo. Somadas aos projetos do setor hidrelétrico, vem fazendo um verdadeiro loteamento dos rios da bacia do Juruena.

Juninho Rikbaktsa exibe panfleto contra UHE Castanheira – Larissa Silva/RJV

UHE Castanheira é apontada como a principal ameaça. Prevista para ser construída no Arinos, rio conhecido pela abundância de peixes, a barragem poderia alterar o curso da água, comprometendo a reprodução de peixes e outros animais, como um molusco bivalve chamado de tutãra pelos Rikbaktsa. Sua concha é o principal elemento de um sofisticado colar usado pelas mulheres durante as cerimônias de casamento. O frágil e raro molusco só pode ser coletado pelos indígenas nas águas do Arinos.  

“Nos manifestamos contra os projetos de hidrelétricas na bacia do Juruena, levantados aproximadamente 180 projetos, com destaque para a UHE Castanheira, UHE Juruena e UHE Mato Grosso, apresentados como falsas soluções para a crise climática e transição energética, mas que destroem a vida de nossos rios e colocam em risco a soberania alimentar e reprodução cultural dos povos”, enfatiza um dos trechos da carta-manifesto. 

Além das três usinas de grande porte mencionadas, o documento também chama atenção para a enorme quantia de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs), cujos processos de licenciamento são simplificados e os impactos cumulativos e sinérgicos são subdimensionados. Tantos empreendimentos, somados aos efeitos das mudanças climáticas, resultaram na abrupta diminuição da oferta de peixes em muitos rios da bacia.

Escassez de peixes e “Cota Zero”

A escassez de peixes nos rios, inclusive, foi uma das pautas do II Encontro da Pesca, uma das mesas que compôs a programação do festival, e que contou com a presença de indígenas Apiaká responsáveis pelo monitoramento da pesca na micro-bacia do rio dos Peixes. O relato de um dos participantes, Piani Kayabi, comoveu os presentes. “Isso é muito triste para mim que sou jovem. Os peixes morrendo, o clima mudando. E não é só nos rios. Onde se planta não está nascendo mais, onde nasce está morrendo”, concluiu com a voz embargada. 

Outra pauta discutida durante o 2º Encontro da Pesca foi o Projeto de Lei nº 1363/2023, conhecido como “Cota Zero”, que proíbe por cinco anos, sem qualquer respaldo científico, o transporte, armazenamento e comercialização de peixes em todos os rios de Mato Grosso. Na prática, inviabiliza a pesca e coloca em risco o sustento de 16 mil pescadores, como se eles fossem os culpados pela diminuição da oferta, isentando de qualquer responsabilidade os empreendimentos hidrelétricos que dificultam a reprodução dos peixes, o uso de agrotóxicos que contaminam rios e lençóis freáticos, o assoreamento de cabeceiras por rebanhos de gado, as mudanças climáticas, dentre outros fatores. “Nos manifestamos pela celeridade da ação de inconstitucionalidade da alteração da lei de pesca, em nome da garantia da subsistência e resguardo das culturas que dependem da pesca em todo estado de Mato Grosso”, apregoa a carta-manifesto sobre a questão.

Mudanças climáticas

A mesa “Percepções e adaptações dos povos e comunidades para o enfrentamento das transformações do tempo” contou com as participações de Dineva Kayabi, Tipuici Manoki e Jaime Rikbaktsa. Durante a conversa, mediada por Andreia Fanzeres, da OPAN, os participantes compartilharam experiências nas Conferências das Partes (COPs) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), e em eventos internacionais para políticas sobre a emergência climática em curso.

Dineva Kayabi relatando suas experiências – Larisa Silva/RJV

Dineva lembrou que a participação em eventos internacionais é importante para que o mundo ouça e tome ciência da situação dos povos indígenas e do contexto ambiental brasileiros: “É um momento de incidência política e climática. Um momento que temos vez e voz”.

Neste sentido, a carta-manifesto pondera que não é papel apenas dos povos indígenas e comunidades tradicionais frear a crise climática. “Nós, povos da floresta, somos os que mais sofrem com os impactos das mudanças do clima e os que mais preservam a biodiversidade e as florestas. É papel do Estado pensar em políticas públicas que permitam a autonomia dos povos indígenas e tradicionais no enfrentamento às mudanças climáticas”.

Sustentabilidade produtiva

O Festival também refletiu sobre modelos de produção sustentáveis, que possibilitem geração de renda aliados à proteção do meio ambiente. A mesa “Experiências de produção e comercialização da agricultura familiar e indígena” possibilitou trocas entre  agricultores familiares e indígenas da região. Renato Felito, do Movimento Afetados por Barragens (MAB), falou sobre a experiência agroflorestal em cooperativas de pequenos produtores e detalhou o passo a passo para uma possível mudança. “Se a produção, a comercialização, a pesquisa e o acesso ao crédito forem pensados de uma forma coletiva, então estamos falando de transição agroecológica”, complementou. 

Helena Oliveira é agricultora familiar na região – Daniella Alvarenga

A importância de se repensar a lógica de produção hegemônica no Brasil, centrada em monocultura, agrotóxicos e acumulação de capital, norteou as discussões.  “Esse modo ultrapassado de modelo econômico gera conflitos e desigualdades, e não deixaremos que isso degrade nossos territórios. Queremos apoio na produção de nossas próprias economias que são baseadas no compartilhamento de recursos, não no acúmulo, e que respeitem as nossas diversidades de saberes, culturas e modos de produção”, enfatiza a carta-manifesto. 

Dona Helena Oliveira, pequena produtora da comunidade Pedreira e Palmital, frisou que o acesso à informação também é fundamental nessa luta. Antes de conhecer os conceitos de agroecologia em uma escola agrícola da região, ela pensava em desmatar e usar agrotóxicos em sua propriedade de três alqueires. “As pessoas fazem a coisa errada não porque querem, é porque não têm conhecimento. Como eu mudei, muita gente pode mudar”.

Comunicação popular

Jovens comunicadores populares – Larissa Silva/RJV

No que diz respeito ao acesso à informação, a comunicação popular também foi discutida. A Rede Juruena Vivo mantém um grupo de comunicadores populares desde 2016, composto por jovens indígenas e não indígenas da região. “A comunicação feita nas bases é instrumento para a proteção dos territórios e divulgação das culturas que são ricas na bacia do Juruena, sendo um potente instrumento de luta dentro do movimento”, destaca a carta-manifesto. 

Durante o Encontro das Juventudes, os jovens compartilharam suas trajetórias e experiências relacionadas à comunicação, além de levantarem propostas de construções coletivas para estimular a escrita. O momento foi uma preparação para o grande Encontro das Juventudes da Bacia do Juruena, previsto para 2024.

Direito dos povos à consulta livre, prévia e informada

A consulta aos povos indígenas é dever do Estado quando se trata de empreendimentos com potencial para afetar o modo de vida dessas populações, como a instalação de hidrelétricas ou construção de estradas. Porém, muitas vezes ela não ocorre ou ignora a forma preconizada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e que prevê que ela seja feita de forma livre, prévia e informada .

Embora seja obrigação do Estado, as consultas, quando realizadas, geralmente são conduzidas pelas próprias empresas responsáveis pelo empreendimento, colocando em xeque a idoneidade do processo. Tipuici Manoki relatou como os indígenas costumam ser tratados nessas situações.

“Eles pensam que aqui só têm rios, esquecem que têm pessoas. Quando avaliam os impactos de uma hidrelétrica, os impactos sociais não são considerados”.

Tipuici Manoki

O Festival refletiu sobre a importância de criação e implementação de protocolos de consulta, que são instrumentos para que cada povo indique suas próprias regras de tomada de decisão em processos de consulta livre, prévia e informada. “É uma ferramenta para nos defender de quem quer explorar nossos territórios sem nos consultar. É um direito de todo povo criar o protocolo de consulta de acordo com sua cultura”, comentou Ivanete Krixi Munduruku. “Exigimos que, desde o planejamento de qualquer empreendimento, se respeite o direito à consulta e que o posicionamento dos povos da bacia seja considerado”, reforça a carta-manifesto. 

Tipuici Manoki – Larissa Silva/RJV

Demarcação do Território Tapayuna

Não é de hoje que a vontade dos povos indígenas não costuma ser levada em consideração quando outros interesses estão em jogo. No início dos anos 1970, após dois envenenamentos criminosos e uma epidemia de gripe que quase os dizimou, os 41 Tapayuna sobreviventes foram retirados de seu território de origem, localizado na bacia do Juruena, entre os rios Arinos e Sangue, e levados a contragosto para a Terra Indígena do Xingu (TIX), onde vivem atualmente.

O povo reivindica o retorno ao território tradicional, que seria um dos mais prejudicados caso a UHE Castanheira saia do papel. Durante apresentação cultural no festival, o grupo Tapayuna empunhava uma faixa com a mensagem:

“A luta dos Kajkwakhratxi/Tapayuna pelo retorno ao seu território original. Demarcação já!”.

Manifestação do povo Tapayuna durante o Festival – Larissa Silva/RJV

A carta-manifesto também é explícita sobre essa questão:

“Exigimos a demarcação das terras indígenas, em especial a Terra Indígena Tapayuna, povo forçado a sair do território tradicional na bacia do Juruena, que ter o direito de retornar e ter garantido seu território originário, ameaçado por projetos extrativos e pela UHE Castanheira”.

Uma década de luta e avanços

Além de discussões, mobilizações e reivindicações, a décima edição do Festival Juruena Vivo também celebrou importantes conquistas. “Nessa caminhada, conseguimos frear o avanço de vários desses projetos de morte por meio da luta, do desenvolvimento do nosso monitoramento territorial com sistemas de alertas e da comunicação popular. Alcançamos espaços para alçar nossas pautas a nível regional, nacional e internacional”, ressalta o documento.

Rede Juruena Vivo na praça central de Juara-MT – Caio Mota/Coletivo Proteja

Durante essa primeira década de existência, há de se destacar, também, a consolidação de um senso coletivo de unidade.

Durante a programação, os presentes puderam desfrutar da feira de saberes e sabores e de apresentações culturais dos povos da bacia, além de apreciar e adquirir a diversidade de seus artesanatos. Também houve um momento para a troca de sementes, enquanto a agenda esportiva movimentava os finais de tarde. Na última noite, houve um desfile cultural indígena e um grande baile popular. 

Anciã e cacique Tapayuna durante a marcha – Larissa Silva/RJV

Estiveram presentes no festival representantes dos povos Apiaká, Kajkwakhratxi Tapayuna, Enawene Nawe, Rikbaktsa, Nambikwara, Manoki, Myky, Haliti Paresi, Munduruku, Kawaiwete/Kayabi, Umutina Balatiponé, Boe Bororo e Matipu, além de agricultores familiares de várias comunidades, representadas pela Associação Pedreira e Palmital, Associação dos Produtores Feirantes de Cotriguaçu, Cooperativa de Produtores Agropecuários da Região Norte do Mato Grosso (Coopervia) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).