Uma batalha pelo Sangue
Justiça suspende licença prévia da UHE Paiaguá após denúncias sobre irregularidades.
Justiça suspende licença prévia da UHE Paiaguá após denúncias sobre irregularidades.
Por: Andreia Fanzeres/OPAN
Cuiabá – No dia 30 de setembro, o juiz federal Ilan Presser determinou a suspensão do licenciamento da Usina Hidrelétrica Paiaguá, projetada para o rio do Sangue (MT). A usina afeta os povos Manoki e Paresi e, desde maio de 2013, quando sua licença foi apresentada ao Conselho Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Consema) para referendo, ela tem sido alvo de críticas ferrenhas do povo Manoki, do Ministério Público Federal e Estadual e de organizações da sociedade civil. Essas entidades denunciam vícios insanáveis ao licenciamento ambiental da hidrelétrica, como falta de Estudo de Componente Indígena e da consulta livre, prévia e informada às comunidades impactadas.
A decisão do juiz evoca o princípio da precaução e considera que o empreendimento pode representar uma “devastação cultural e ambiental que perigosamente se avizinha”. Menciona um parecer elaborado pela Fundação Ecotrópica ao Consema, que detalha o comportamento da Secretaria do Estado de Meio Ambiente (Sema), ao não cobrar do empreendedor Global Energia Elétrica S/A o cumprimento dos itens exigidos no termo de referência, como a avaliação de impactos cumulativos e seus efeitos sinérgicos em toda a bacia hidrográfica, tal qual recomenda a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) do Juruena. Também lembra a recomendação de que a própria AAI, elaborada pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), seja instrumento a ser considerado no licenciamento de qualquer usina, de qualquer porte na bacia, uma vez que o estudo fora concebido justamente para esta finalidade. Hoje, ele fica guardado nos escaninhos da Sema sem aplicação alguma nos licenciamentos de hidrelétricas.
O parecer da organização ambientalista também denuncia informações equivocadas e mal prestadas à população durante as audiências públicas que ocorreram nos municípios de Campo Novo do Parecis e Nova Maringá em setembro de 2012, além de ignorar qualquer possibilidade de impacto aos povos indígenas com o barramento, que acabar com 19 quilômetros do rio do Sangue. A usina é cotada para gerar 28MW e alagar pelo menos 2.200 hectares de uma região reconhecida pelo governo brasileiro (Probio) como prioritária para conservação da natureza – região fundamental para a migração de avifauna – mas que, no entanto, ainda não está legalmente protegida.
Em relação à argumentação rasa do empreendedor de que a usina não afetaria terras indígenas por se encontrar a mais de 10 quilômetros de distância da TI Manoki e da TI Ponte de Pedra, o juiz ressaltou que “não se pode desconsiderar que remanescem dúvidas pungentes quanto às consequências e os diversos impactos potencialmente causados pelo empreendimento aos índios (…), como o comprometimento da qualidade da água do rio Sangue e da diversidade biológica nele abrigada, com riscos à sobrevivência e à saúde da população indígena, sem falar nos danos potenciais às áreas sagradas, relevantes para as crenças, costumes, tradições, simbologia e espiritualidade das etnias”.
Em atendimento a uma solicitação posta na ação civil pública do Ministério Público Federal em Mato Grosso, o juiz concorda que no caso da UHE Paiaguá o Ibama é o órgão ambiental legitimado para conduzir o licenciamento em razão de sua proximidade com terras indígenas.
De acordo com Andrea Jakubaszko, coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da OPAN, a suspensão da licença prévia da UHE Paiaguá representa lucidez da Justiça Federal de Mato Grosso em determinar que a instalação do empreendimento respeite de fato o ordenamento jurídico que rege os processos de licenciamento ambiental, não dando margem para que os interesses do setor elétrico se sobreponham ao arcabouço da legislação brasileira.
Segundo a AAI do Juruena, até sua foz o Sangue já tem projetadas a UHE Kabiara (241,2 MW) junto à TI Erikpatsa, UHE Roncador (134MW) e UHE Parecis (74,5MW) vizinhas à TI Manoki, além da UHE Paiaguá (28MW), PCH Inxú, PCH Baruíto e PCH Garganta da Jararaca, essas duas em operação, conforme a Aneel. A UHE Paiaguá está orçada em R$ 220 milhões e, segundo informações do empreendedor divulgadas durante a etapa de audiências públicas, terá 70% de seu custo bancado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Relembre o caso
A licença prévia da usina Paiaguá foi referendada pelo Consema em uma votação apertada. Após empate, o caso foi decidido a favor do empreendedor graças ao voto de minerva do Secretario Adjunto de Meio Ambiente da Sema, Ilson Sanches. Durante a reunião ordinária deste fórum no dia 19 de junho de 2013, a Sema não se sensibilizou com o discurso dos indígenas, com o posicionamento das organizações da sociedade civil nem com a exposição do MPE, ao demonstrar que o empreendedor baseou seu EIA em dados secundários, cometendo erros primários quanto à metodologia de pesquisa, identificação de espécies tendo, inclusive, plagiado trechos inteiros de uma tese de doutorado encontrada na internet sem mencionar autoria.
Por fim, como se um recado desse ao próprio judiciário – acostumado a derrubar em questão de horas decisões bem fundamentadas de juízes que procuram defender o direito das comunidades afetadas por hidrelétricas, como foi o caso recente da suspensão das audiências públicas da UHE São Manoel – o juiz Ilan Presser alerta que “o poder judiciário não pode tolerar, sob o pretexto da necessidade de desenvolvimento célere, a desconsideração do marco regulatório vigente à construção de usinas, em que haja povos indígenas afetados”. Acrescenta ainda que “é inadmissível a imposição da aceleração de um procedimento complexo de licenciamento, que ignore a necessidade de um consistente Estudo de Componente Indígena, a apontar com confiabilidade os impactos socioambientais sobre as comunidades indígenas afetadas, antes da marcação de audiências públicas”.
A Justiça fixou em 50 mil reais o valor da multa diária a Global Energia Elétrica S/A em caso de descumprimento da sentença.
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