O legado sombrio da ditadura: genocídio e esbulho territorial contra povos indígenas no Brasil e a urgência da reparação
Em Mato Grosso os Kajkwakhratxi-Tapayuna quase foram dizimados por envenenamento e doenças. Já os Panará e Cinta Larga foram vítimas de remoções forçadas e violência extrema
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As profundas marcas da ditadura militar (1964-1985) no Brasil atingiram de forma cruel os povos indígenas. O documento “Direitos Humanos, Povos Indígenas, Ditadura Militar no Brasil”, elaborado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) em parceria com a Amigos da Terra – Amazônia Brasileira (AdT), tece contribuições sobre este sombrio período da nossa história ao relator especial sobre Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição da Organização das Nações Unidas, Bernard Duhaime.
Em visita ao Brasil, Duhaime avaliou as medidas adotadas pelo país para lidar com as graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura e solicitou informações sobre ações já implementadas ou planejadas pelo país em busca da verdade por desaparecidos, investigação de responsabilidades, justiça e responsabilização em processos criminais e prestação de contas, reparação às vítimas, memorialização e garantias de não repetição.
A história do povo Kajkwakhratxi-Tapayuna, que tradicionalmente habitavam as margens do rio Arinos, em Mato Grosso, ilustra essa tragédia, marcada por tentativas violentas de “pacificação” pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, posteriormente, pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Os registros mostram envenenamentos em massa em 1953 e novamente na década de 1960, além da disseminação de gripe após expedição da Funai em 1969, resultando em inúmeras mortes. A colonização desenfreada da região, impulsionada por políticas estaduais e federais que visavam o desenvolvimento a qualquer custo, fomentou a invasão de seus territórios por fazendeiros, garimpeiros e madeireiros, intensificando os conflitos e a violência.
Na década de 1970, Kajkwakhratxi-Tapayuna que sobreviveram a essa onda de violência foram compulsoriamente transferidos para o Parque Indígena do Xingu, um ato que culminou com a extinção formal de sua reserva original em 1976. O impacto demográfico foi avassalador: dos aproximadamente 1.200 membros estimados em 1968, apenas 41 indivíduos chegaram ao novo território.
Nesse sentido, o documento elaborado pela OPAN e AdT reforça a urgência da criação de comissões da verdade (nacional e estadual, com participação indígena), a imediata demarcação de terras, a adoção de medidas reparatórias integrais e a garantia de que a Câmara de Conciliação respeite os direitos constitucionais e internacionais dos povos indígenas.
Yaiku Suya Tapayuna, liderança do povo, relembra o impacto daquele período: “Aconteceram muitas mortes pelo território durante a caminhada para ir para outro local. Sobreviveram só 41. E hoje somos 445”.
A luta atual do povo Kajkwakhratxi-Tapayuna é pela recuperação de suas terras, perdidas devido à ação da ditadura e à omissão da própria Funai, que extinguiu seu decreto de demarcação.
Quase meio século após os eventos, ainda não houve conclusão do processo demarcatório nem qualquer forma de reparação para o povo Kajkwakhratxi-Tapayuna.
Comissão Nacional da Verdade e Relatório Figueiredo: documentos que mostram violações de direitos no Brasil
O documento elaborado pela OPAN e AdT traz dados do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída pela Lei nº 12.528/2011, que revelou uma realidade brutal e sistemática: os povos indígenas foram alvo de reiteradas e estruturais violações de seus direitos fundamentais em um período ainda mais amplo, entre 1946 e 1988, como no caso dos crimes cometidos contra o povo Xavante de Marãiwatsédé, detalhados pela Associação Bo’u em 2013.
Outra importante fonte é o Relatório Figueiredo, que investigou os abusos cometidos contra indígenas ao longo do século XX. Nos relatórios ficou claro as ações e omissões de agentes do Estado brasileiro: uma visão de desenvolvimento que negligenciava a existência e os direitos originários dessas comunidades e resultaram em 8.350 indígenas mortos – um número que a própria CNV ressalta ser possivelmente subestimado devido às limitações na análise de todos os povos afetados.
No Relatório Figueiredo as informações mostraram que servidores públicos e particulares utilizaram armamentos convencionais e biológicos para o extermínio deliberado de comunidades inteiras. O documento expôs um cenário de terror e violência sistemática, onde a vida e a integridade física dos indígenas eram desrespeitadas.
As investigações do Relatório Figueiredo também trouxeram à tona a maneira como o próprio SPI, teoricamente incumbido de proteger os povos indígenas, legitimou a invasão de seus territórios. Contratos de arrendamento fraudulentos foram utilizados para favorecer os interesses de latifundiários, políticos e agentes públicos, enquanto documentos falsos eram emitidos com o objetivo de negar a presença indígena em áreas de interesse econômico. A lista de atrocidades documentadas é extensa e criminosa: tortura física e psicológica, violência sexual sistemática, sequestro de crianças, e a disseminação intencional de doenças como arma para desarticular e eliminar as populações originárias.
A gravidade dos casos documentados tanto pela CNV quanto pelo Relatório Figueiredo é inegável, apontando para práticas que se encaixam nas definições de genocídio e etnocídio por parte do Estado brasileiro.
Em Mato Grosso, as consequências dessas políticas foram sentidas de forma devastadora pelos Kajkwakhratxi-Tapayuna, mas também por diversas etnias. O povo Panará sofreu remoções forçadas de suas terras ancestrais, além de amargar os impactos destrutivos de grandes obras de infraestrutura implementadas sem o devido respeito aos seus direitos e modos de vida.
Já o povo Cinta Larga enfrentou um ciclo de violência brutal, marcado por envenenamentos, epidemias que dizimaram sua população, execuções sumárias e a destruição sistemática de suas aldeias, tudo isso em um contexto de conivência ou, no mínimo, omissão por parte da Funai, o órgão que deveria protegê-los.
Diante da clareza dos fatos e do comportamento doloso da Funai, o Ministério Público Federal (MPF) não hesitou em classificar esses eventos como genocídio, em relação aos Kajkwakhratxi-Tapayuna. Embora haja um vasto conjunto de provas reunidas pela CNV, incluindo o detalhado Relatório Figueiredo, o Estado brasileiro demonstra uma alarmante lentidão em instituir mecanismos efetivos de reparação, como uma Comissão Nacional Indígena da Verdade. As violações persistem devido a uma visão de desenvolvimento que viola os direitos originários, com entraves nos três Poderes à regularização fundiária, como a aprovação da Lei 14.701/2023, do Marco Temporal.